"Foi um choque, estamos anestesiados", diz pai de vítima da boate Kiss sobre anulação da condenação

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"Foi um choque, estamos anestesiados", diz pai de vítima da boate Kiss sobre anulação da condenação


Familiares e sobreviventes pretendem recorrer da decisão que anulou o júri. Réus deixaram presídios na noite de quarta

Porto Velho, RO - Familiares das vítimas e sobreviventes da tragédia de Santa Maria irão recorrer da decisão que anulou o julgamento dos quatro condenados pelo incêndio na boate Kiss. Na tarde desta quarta-feira, dia 3, desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiram anular o júri, ocorrido no ano passado. A decisão se deu por dois votos contra um na análise dos recursos da defesa dos réus, baseados em falhas dos ritos processuais. Com o resultado, as prisões deverão ser revogadas e um novo júri será marcado.

Pai de uma das vítimas, o mestre de obras Flávio José da Silva afirmou que os familiares e sobreviventes estão se reorganizando para entrar com um recurso especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, se preciso, um extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar anular a última decisão. Silva é pai da estudante Andrielle Righi da Silva, que no dia da tragédia comemorava com amigas seu aniversário de 22 anos. Ele e outros cerca de 50 familiares viajaram de ônibus de Santa Maria a Porto Alegre para acompanhar a sessão de ontem.

- Foi um grande choque, a gente não acreditav na possibilidade dessa nulidade - afirmou. - Assistimos tudo, tivemos de engolir justificativas injustificáveis. Eles alegam que houve irregularidade no júri, mas as irregularidades maiores foram aquelas que mataram nossos filhos. Isso acabou com a gente. A gente vê que valor à vida não é nada. Estamos anestesiados com tudo que aconteceu lá.

Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria de 2019 até o último dia 30 de julho, Silva conta que, nas seis horas de viagem do "amargo retorno" a Santa Maria, teve de acalmar alguns familiares que não estavam compreendendo a decisão.

- Pessoal todo querendo entender melhor o que tinha acontecido. É muito complicado tentar explicar e acalmar um pai e uma mãe que não conseguem entender o inexplicável - lamentou.

Pai de outra vítima, o aposentado Paulo Tadeu Nunes de Carvalho diz que este não foi o primeiro choque ao longo do processo. Decisões anteriores, que segundo ele favoreceram os réus, já deixaram os familiares desapontados com a justiça. Seu filho, o administrador Rafael Paulo Nunes de Carvalho, de 32 anos, estava visitando amigos do Rio Grande do Sul na noite da tragédia. Havia ido comemorar seu aniversário.

- A ideia sempre foi levar para a prescrição. Isso já ocorreu antes. Agora, mais essa. Mas vamos continuar. Eles não foram absolvidos, e nem o dolo foi anulado. Vai ter outro julgamento. Terá mais sofrimento, até mesmo a morte, como já aconteceu com familiares? Terá. Causará mais dor, mas esperamos que seja breve. E que, um dia, a gente tenha paz - disse ele, reforçando que o efeito da condenação na prevenção contra incêndios é muito forte.

Em liberdade

Com a decisão, foram soltos Elissandro Sphor, dono do estabelecimento condenado a 22 anos e seis meses de reclusão; o seu sócio, Mauro Hoffmann, condenado a 19 anos; o vocalista da banda que se apresentava no local, Marcelo dos Santos, condenado a 18 anos; e o assistente do conjunto musical Luciano Bonilha Leão, também condenado 18 anos. Em dezembro de 2021, os quatro foram condenados pelo incêndio que matou 242 jovens na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria.

Segundo a Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo do RS, os quatro réus deixaram a prisão na noite de quarta-feira, 3. Leão e Santos estavam recolhidos no Presídio Estadual de São Vicente do Sul. Spohr e Hoffmann foram liberados da Penitenciária Estadual de Canoas. Consideradas as duas passagens dos réus por penitenciárias, com início em 2013 e 2021, eles ficaram, em média, um ano presos.

A alegação das defesas dos réus eram baseadas em uma série de nulidades que teriam ocorrido durante o júri relativas aos ritos e procedimentos. A escolha de um jurado às vésperas do julgamento, por exemplo, foi alegada pela defesa de Hoffmann como um elemento que causou prejuízo aos réus.

Os desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto acataram o argumento da defesa, como problemas no sorteio dos jurados e em atos do juiz na condução do júri. Presidente da sessão, Manuel José Martinez Lucas votou contra a anulação do júri.

MP irá recorrer

Assim que a decisão do TJ for publicada, o Ministério Público do Rio Grande do Sul também recorrerá ao STJ e ao STF. Segundo Júlio César de Melo, sub-procurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP-RS, os promotores se reuniram, ainda na noite de ontem, para avaliar os próximos passos.

- Os prazos processuais para recurso iniciam a partir da prolação deste acórdão. Isso permitirá o recurso especial para o STJ e extraordinário para o STF - afirmou Melo.

Ainda ontem, em razão da determinação do TJ de colocar os quatro réus em liberdade, o MP entrou com um pedido no STF para manter os réus presos.

Em dezembro de 2021, logo após o Júri que condenou os quatro réus e determinou as prisões, as defesas apresentaram ao TJ um habeas corpus preventivo para mantê-los em liberdade. Na ocasião, o MP entrou com pedido de suspensão de liminar no STF. O presidente do Supremo, o ministro Luiz Fux, entendeu que a medida de prisão deveria ser cumprida e, posteriormente, afirmou que a revisão da decisão só poderia ser analisada pela presidência.

- No nosso entender, o Fux é a única autoridade competente para avaliar essa questão. Isso foi inclusive manifestado na decisão dele em dezembro. Naquela decisão, ele se manifestou dizendo que qualquer revisão da prisão deveria ser feita pela própria presidência - avaliou Melo.

A tragédia

No dia 27 de janeiro de 2013, o estabelecimento sediava a festa universitária 'Aglomerado', quando um sinalizador para ambientes externos foi aceso pelo vocalista da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no evento, dentro da casa de shows.

As centelhas disparadas pelo artefato atingiram parte do teto da boate, revestido por uma espuma para isolamento acústico, dando início ao fogo que rapidamente se alastrou. Com o incêndio, gases tóxicos foram liberados, motivando a maioria das mortes, segundo a perícia. A casa noturna não tinha saídas de emergência e extintores de incêndio na validade. Seguranças ainda impediram que parte das vítimas saísse, a mando dos donos, para que pagassem as contas. Ao todo, 600 pessoas ficaram feridas.


Fonte: O Globo

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