Pra Gil por Gil

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Pra Gil por Gil


Miguel Pinto Guimarães celebra a vida e a obra de Gilberto Gil usando exclusivamente trechos extraídos de suas músicas

PORTO VELHO, RO
Pra Gil

Sabe gente, hoje o dia nasceu diferente. Não é Natal, nem Ano Bom, nem Carnaval, nem São João. Hoje é dia de folia! Silêncio na cidade não se escuta. Hoje o dia nasceu diferente pra gente.

Pra prestar nossa homenagem, o mar disse “Oba”, o céu disse “Ora”. Ê-emoriô! E o sol preparou-se pra fazer da aurora um prazer tão doce, um gosto de viver que nunca fosse embora.

Ora, iêiê, ô...

Entra baiano, sai ano, todo dia vinte e seis, como todos vocês, eu faço igual. Todo dia vinte e seis eu passo bem ou mal. É que só no meu caso é especial. Neste meu dia vinte e seis, portanto, já que eu viajei esse tanto pra vir me apresentar, não leve a mal... já que é depois do São João, diferente do parabéns normal, eu vou cantar um parabéns baião. Veio gente me aplaudir, veio gente vaiar! Subo nesse palco para ver o canto, cantar o cantar!

Ah! Ah! Yê-yê...

Celebra-se o poeta que se é. Aparece a cada cem anos um. E a cada vinte e cinco um aprendiz. Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país. A cada cem anos um mestre aparece entre nós, e entre nós alguns que o seguirão, ampliando-lhe a voz e o plangente violão.

Kaô Kabieci lê...

É como se Deus irradiasse uma forte energia. Vem debaixo do barro do chão e se transforma em ondas de baião, xaxado e xote. Rachados pelo machado mágico de Xangô, e assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rythm’n’blues. Que parecia um prelúdio bachiano, um frevo pernambucano, um choro de Pixinguinha. Cântico dos quânticos! Doces canções de amor e paz, o lamento de tantos ais. Bat-bat-batidão, baticum, batmakumbaoba... Máquina de ritmo, batuque puro! Transfigurado na luz, nos raios mágicos de um refletor. Na cor que o instante produz, toda vez que eu canto é amor.


O amor aqui de casa bate asas no verão. É parte da natureza e arte do coração.

De minha gente, minha semente, Preta Maria, Zé, João. Ê José, ê João... Duas MariNaravilhas, Maria minha, nossa alegria. Bem, que eu me lembro, chegou sem correr... Bem devagar. Vida Bela, ê, ê, camará! Como é tão bela, como é tão bela, ó!

Dina, chega benção de Claudina! Zeca, meu pai, mandou um beijo gostoso, um abraço saudoso. Amor de pai, de mãe, de irmão. Drão, os meninos são todos sãos!

Minha música, musa única, mulher. Mãe dos meus filhos, ilhas de amor. Ó, Flora! Frondosa jaqueira futura. Ainda mais linda, madura! É a sua vida que eu quero bordar na minha como se eu fosse o pano e você a linha.

Tudo que nasce é reBento, será suave, ameno, Sereno, gostoso. Que o Sol de Maria seja a luz do dia, seu farol, sua guia, sua ternamente rara Flor.

Seus pais, seus tios, seus primos, avós e bisavós. Que o mundo seja bom, que o mundo seja bom pra nós!

Pedro, reperpétuo. Eu agora não tô mais com medo. Deus me livre de ter medo agora! Abra-se cadabra-se o temor! Se eu morresse de saudade não poderia dizer “Que bom morrer de saudade e de saudade viver”. E apesar de ter comigo a saudade, a saudade não me faz chorar. Iemanjá me trouxe a dor, Carnaval tem que levar!

Oh, meu Deus do céu, na terra é carnaval! Mais um carnaval de lascar o cano. Quanto mais serpentina, melhor! Quanto mais purpurina, melhor! Umbanda de gente cantando e dançando. O ambiente efervescente de uma cidade a cintilar! Realce! De repente a gente brilhará! Somos cantores. Cantamos as flores, cantamos amores. Trazemos também a notícia da grande alegria que vem pra durar mais que um dia. E ficar como cantigas antigas que não morrem, que não passam jamais. Como passam sempre os carnavais.

Iaiá, kiriê, kiriê, iaiá...

O que me faz cantarolar é a esperança de chegar criança, ainda que crescida, aos jardins do fim da vida. E assim nossa prosa seguiria, o assunto era instigante, quando muito ali defronte, o horizonte promissor. Falei do tempo, falei da dor. Tô fechado pra balanço, meu saldo deve ser bom... Todo mundo me pergunta se essa história aconteceu. Aconteceu, minha gente! Quem está contando sou eu.

Hoje eu me sinto, como se ter ido fosse necessário para voltar. Até onde essa estrada do tempo vai dar? Dei a volta ao mundo e aqui cheguei para ficar. Não se iludam! Não me iludo. As circunstâncias disporão, a depender do coração. Não adianta nem me abandonar... Tanto mais vivo, de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá.

De ti ti ve vi da da da...

Vamos seguir. Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço. Pela estrada escura, nossa caminhadura. Juntos manter o passo, não ter cansaço, não crer no fim. Que não tem fim! Que não tem fim, ô menina que não tem fim... E como o fim da linha nem sempre é ponto final... Me convenci, o bom da vida vai prosseguir! A gente quer, a gente quer, a gente quer é VIVER!

Lá lalalalalalalá...

Tomara que as eras que ainda virão, celebrem tambores de um mundo pagão, e as feras uivantes dos alto-falantes da nova canção!

Kaya já Kaya N'Gan Daya!

Por Gil

Fonte: O Globo

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