Nélida Piñon doa 8 mil livros ao Instituto Cervantes do Rio, que inaugura biblioteca com nome da autora: 'Preciso deixar rastros'

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Nélida Piñon doa 8 mil livros ao Instituto Cervantes do Rio, que inaugura biblioteca com nome da autora: 'Preciso deixar rastros'


Espaço será aberto ao público segunda-feira (20), destacando coleção sobre a Galícia, volumes com anotações da homenageada e obras autografadas por outros escritores: "Me despedi de todos aqueles livros com um certo sofrimento. Aí, fui percebendo o privilégio que estava tendo"

PORTO VELHO, RO - Ainda criança, Nélida Piñon criou sua biblioteca. Literalmente: a menina escrevia histórias em folhas avulsas e costurava-as, montando “livros” que guardava carinhosamente na estante. Logo viriam obras de outros autores: edições do gibi “O Tico-Tico”, almanaques de curiosidades que ganhava no final do ano, obras de Machado de Assis apresentadas pelo pai. Quando Nélida tinha 12 anos, aliás, Lino Piñon abriu para a filha uma conta na livraria Freitas Bastos, no Largo da Carioca. Toda a semana, ela ia de Vila Isabel até o Centro do Rio para escolher um livro (“às vezes, dois”, confessa).

— Nunca meu pai nem minha mãe fiscalizaram o que comprei, se era livro proibido, erótico, pornográfico, nada. Foi um privilégio terem essa visão progressista, queriam que eu fosse uma menina culta— conta Nélida, 85 anos, escritora traduzida em mais de 30 idiomas, com uma obra que contempla conto, romance, crônica, memória e ensaio.

A pequena leitora chegou à Academia Brasileira de Letras (ABL), sendo sua primeira presidente mulher entre 1996 e 1997. E a pequena biblioteca virou uma coleção de 8 mil livros que forma um painel da literatura mundial, especialmente hispano-americana e brasileira, e inclui prateleiras dedicadas às “obsessões perenes” da autora, como a Idade Média, o velho oeste mítico de Karl May, religião, ópera, balé e a Galícia, terra do pai e dos avós maternos. No final de 2021, Nélida decidiu doar ao Instituto Cervantes do Rio quase todo o seu acervo, que será aberto ao público na segunda-feira, com a inauguração da Biblioteca Nélida Piñon no local.

— Me despedi de todos aqueles livros que me educaram, que eu amo, com um certo sofrimento. Aí, fui percebendo o privilégio que eu estava tendo. Muitas vezes os escritores morrem e sua biblioteca não é respeitada pelos herdeiros. Eu me antecipei e respeitei a minha biblioteca, que agora terá novos leitores — diz Nélida, desde 2020 impedida de ler por um problema de visão. — Desde menina, entendi que precisava deixar rastros. Eles são fundamentais para sua existência, sua arte, o que você é.

O poeta e crítico literário Luís García Montero, diretor do Instituto Cervantes, virá ao Brasil para a homenagem a Nélida, “grande escritora e, mais que isso, uma grande amiga”, diz ele. Montero destaca que a autora, que recebeu cidadania espanhola em 2021, é a primeira pessoa de língua não espanhola a receber esta homenagem da instituição cultural ligada ao governo da Espanha:

— Batizar a biblioteca com seu nome destaca esta que é uma das grandes narradoras contemporâneas desde a sua estreia, em 1961, com “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, e que depois nos deu tantas obras importantes.

— O impressionante do arquivo de Nélida Piñon é que ele transpira a satisfação de viver. Nélida usa o passado para pavimentar o futuro.

— Graças a Deus e aos deuses, Nélida Piñon é brasileira. Nossa cultura deve a ela, além de uma prodigiosa e importante obra literária, uma vivência ampla e pessoal com o nosso chão, com a nossa vida cultural tão batalhada. Nélida Piñon é uma personalidade de dimensão histórica do nosso País.

Tesouros ‘piñoneanos’

Estão incluídos na Biblioteca Nélida Piñon o acervo particular herdado da lexicógrafa Elza Tavares, clássicos franceses e ingleses e muitas obras de autores de língua espanhola e portuguesa. Próxima de muitos escritores, Nélida angariou livros com dedicatórias de autores brasileiros como Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Lygia Fagundes Telles. Também lhe deram autógrafos amigos como o português José Saramago, o peruano Mario Vargas Llosa, o mexicano Carlos Fuentes, o colombiano Gabriel García Márquez e a americana Toni Morrison.

Boa parte das obras, ressalta Antonio Maura, diretor do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, contém comentários e anotações nas margens feitas por Nélida:

— Estes documentos constituem material imprescindível para os pesquisadores que se dedicam às investigações piñoneanas, assim como à literatura hispano-americana do século XX.



A escritora Nélida Piñon e Antonio Maura, diretor do Instituto Cervantes do Rio de Janeiro — Foto: Leo Martins

Bibliograficamente falando, a grande joia é a coleção Galícia de Piñon, que reúne obras ligadas à região no noroeste espanhol. Como destaca Maura, é o maior acervo especializado em língua, literatura e cultura galegas fora da Espanha. Recorrente na obra de Nélida, a emigração galega para o Brasil é o tema central do romance “A república dos sonhos” (1984).

— A Galícia é o meu mito, minha terra prometida — diz a autora, cujo nome é um anagrama do nome do avô materno, o galego Daniel Cuiñas.

Popeye e a arte da ficção

Durante o processo de doação da biblioteca para o Cervantes, Nélida recebeu uma honra na matriz do instituto, em Madri. Fez um “depósito” na Caja de Las Letras ("caixa das letras"), conjunto de cofres no porão do edifício (que já foi sede de um banco) onde artistas guardam objetos que simbolizem sua trajetória.

Quem abrir a caixa de Nélida vai encontrar, entre livros e fotos, dois bonecos: um do marinheiro Popeye e outro de sua companheira, Olívia Palito. Com riso travesso, a autora explica: quando pequena, ela só comia se a mãe lhe contasse histórias, e suas preferidas eram as de Popeye.

— Em momentos de fragilidade, ele abria a lata de espinafre, comia, e tinha uma reação no corpo, aqueles bíceps iam crescendo, crescendo e ele enfrentava qualquer um! Eu achava aquilo extraordinário! — recorda a escritora, erguendo e flexionando o braço. — Quando o [escritor Fernando] Sabino soube disso, me deu de presente o casalzinho de borracha, que está lá no cofre em Madri. É homenagem à minha mãe, Olívia Carmen. Mas também ao mistério da literatura, ao espírito de aventura que faz com que eu criança ou você adulto acredite no que estão contando. Na literatura, se é verdade ou não, não importa. Você abraça cada palavra como se fosse a mais legítima de todas.

Livro novo a caminho

Em entrevista no mês passado para o blog Longevidade: Modo de Usar, que a jornalista Mariza Tavares mantém no G1, Nélida Piñon deu uma declaração que repercutiu: “Escritores com obra consagrada estão sendo postos à margem por não pertencerem mais ao mercado da beleza e da estética.” Contra o etarismo, Nélida dedica-se diariamente a um novo livro. Ainda sem título, será nos moldes de "Uma furtiva lágrima" (2019): uma obra de fragmentos, memórias e reflexões, “sobre a arte de pensar o mundo, o Brasil, a vida”.

Com a visão prejudicada da autora, a feitura do livro é um processo complexo, mas possível. Primeiro, Nélida grava ideias em um aplicativo de celular que converte áudio em texto; depois, o material é relido à autora por Karla Vasconcelos, sua assistente pessoal. Atenta, de olhos fechados, Nélida vai "editando" o livro, dizendo quais trechos serão mantidos, descartados ou guardados para reavaliação (“frase boa não se joga fora”, gosta de repetir).

Nos últimos tempos, ela também se ocupou com a nova edição que a Record lança dia 27 de junho do romance “A casa da paixão” (1972), que marcou época pela forma franca com que trata da sexualidade feminina. Em seu cinquentenário, o livro ganhou capa e projeto gráfico novos e prefácio de Sérgio Abranches.

Nos intervalos do trabalho, Nélida gosta de cozinhar, assistir a programas de gastronomia, ver vídeos na internet (“o povo brasileiro se socorre no YouTube”) e ouvir música, preferencialmente ópera. Desfruta intensamente a ABL (“toda semana está lá, acompanha de perto a instituição e os confrades”, conta Karla). Além disso, passeia na Fonte da Saudade com a pinscher Suzy Piñon e a chihuahua Pilara Piñon.

Conforme citado acima, a autora não doou todos os seus livros. Reteve toda a coleção de Machado de Assis, Cervantes e Shakespeare, o “Decamerão”, a “A canção de Rolando” e a cópia dos originais de “A guerra do fim do mundo”, livro sobre o conflito de Canudos que Vargas Llosa dedicou a ela e lhe enviou antes de publicar. Ficou também um de Cecília Meireles, “Romanceiro da Inconfidência”. Este inclui versos que estão entre os seus preferidos — e talvez resumam seu espirito: “Liberdade, essa palavra/ que o sonho humano alimenta,/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.


Fonte: O Globo

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