De ‘micro-ondas’ a ‘totem’ de votação: a trajetória das urnas eletrônicas

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De ‘micro-ondas’ a ‘totem’ de votação: a trajetória das urnas eletrônicas

Equipamento foi adotado em 1996 para combater fraudes nas eleições com cédulas de papel; segurança também evoluiu com os anos


PORTO VELHO, RO - Pense em como eram os celulares há 25 anos. Os automóveis, as geladeiras, os televisores: tudo mudou muito. As urnas eletrônicas, que fizeram sua estreia no Brasil em 1996 ― e se preparam para sua 14ª eleição neste ano ―, também evoluíram, embora ainda tenham praticamente a mesma carinha.

Para saber o que há de diferente na máquina de votar, a CNN conversou com dois especialistas: Fernando Guarnieri, cientista político do Instituto de Estudos Sociais e Político da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), e Giuseppe Dutra Janino, coautor do projeto da urna eletrônica e secretário de tecnologia da informação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até julho de 2021, quando deixou o órgão depois de 15 anos.

A era do voto em papel

“A urna foi criada porque a situação das eleições no Brasil era insustentável”, lembra Guarnieri. A gota d’água foi o pleito do Rio de Janeiro, em 1994, quando o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do estado anulou as eleições para deputados federais e estaduais diante de uma enxurrada de denúncias de irregularidades.

“A urna era um saco de lona, trancado a cadeado. Algumas vinham mais pesadas que outras. Quando eram abertas, havia maços de cédulas preenchidas da mesma forma, presas a um elástico, como se fossem maços de dinheiro”, conta Janino.

Outra forma comum de fraudar as eleições era o chamado “voto formiguinha”: primeiro, um cabo eleitoral coagia um eleitor no início da fila para que, na hora de votar, ele furtasse a cédula oficial e depositasse na urna um papel qualquer.

Ao deixar o local de votação, a cédula era entregue ao cabo, que a preenchia com seu candidato e a entregava para outro eleitor na fila.

Essa segunda pessoa depositava a cédula já preenchida na urna e trazia uma nova cédula furtada, em branco, para o cabo eleitoral, que a preenchia de novo e a entregava a um terceiro. Esse processo ia sucessivamente se repetindo.

A primeira urna: um ‘micro-ondas’

Quando a primeira urna foi usada em 1996, ainda em fase de teste em 26 capitais ― com exceção do Distrito Federal ― e em 31 municípios com mais de 200 mil eleitores, ela parecia um micro-ondas. “Era retangular, tinha um teclado de borracha e usava disquetes para a gravação dos dados”, lembra Janino.

Na eleição seguinte, em 1998, quando foi usada em todos os municípios com mais de 40 mil eleitores, ela assumiu o design que tem hoje: um monobloco branco, com a frente inclinada e um teclado grande, com uma tela ao lado.

Foi nessa época que as grandes mudanças no eleitorado também começaram a acontecer, diz o cientista político Fernando Guarnieri.

Numa pesquisa que ganhou destaque no meio acadêmico, o cientista político Daniel Hidalgo comparou o resultado das eleições nas cidades de 39 mil habitantes que usaram o sistema de papel com as de 40 mil, onde a urna eletrônica foi usada.

A conclusão: houve uma queda de 13% no total de votos inválidos (brancos e nulos) nas cidades que usaram a urna eletrônica em comparação com as demais. “Isso significava um aumento de 30% no eleitorado nessas cidades, o que mostra como a urna era, e ainda é, inclusiva”, afirma Guarnieri.

Pioneirismo: as memórias digitais

Nessas duas primeiras versões da urna, os dados já eram gravados em criptografia, ou seja, só podiam ser decodificados pelo TSE ― por segurança e para evitar interferências.

“Mas a grande mudança de um ano para o outro foi que o disquete deixou de ser usado, e os votos passaram a ser gravados em memórias digitais, algo parecido com os pendrives de hoje”, conta Janino.

As memórias digitais foram usadas nas urnas eletrônicas antes mesmo de se tornarem populares, na década seguinte, nas máquinas fotográficas digitais.

“A gente usava o que de mais moderno existia. Essa urna de 1998, por exemplo, foi o primeiro equipamento do mundo a utilizar a memória digital”, diz o ex-secretário do TSE.

O grande salto na segurança

De 1998 a 2009, as urnas passaram por atualizações de software, ano a ano, para se manter seguras, eficientes e baratas. Mas foi em 2009, nas preparações para as eleições presidenciais do ano seguinte, que elas deram seu maior salto tecnológico.

A estrela foi o novo hardware de segurança, usado até hoje. É um chip protegido, blindado e com certificados digitais. Qualquer tentativa de manipulação nesse chip faz com que ele se autodestrua.

E qual a sua função? Ele verifica a integridade dos softwares que fazem a urna funcionar.

É como um carro que só funciona com peças originais da montadora. Se uma peça ou software “paralelo” for instalado, o carro não funciona. Com a urna, é igual.

Se computadores de funcionários do TSE, por exemplo, acabassem invadidos por hackers e essas máquinas fossem usadas para fazer qualquer atualização ou mudanças numa urna, o hardware não reconheceria o processo, acusaria a invasão maliciosa e deixaria de funcionar.

“Esse foi o maior salto qualitativo de segurança”, diz Janino. “Com ele, a urna não funciona se houver algo alterado.”
Alguns críticos dizem, sem apresentar provas, que as fraudes não foram mais identificadas nesses 25 anos porque, na verdade, não existiriam instrumentos para identificá-las. Janino discorda.

“Isso é incorreto. O sistema pode atestar isso”, afirma.

Nos últimos anos, esse mesmo sistema de segurança vem sendo atualizado. Umas dessas atualizações rege o “liga e desliga” da urna. Ela, por exemplo, não pode ser ligada fora do dia da eleição.

A urna tem uma espécie de trava, um mecanismo que a faz funcionar só no dia do pleito, das 7h até um pouco depois das 17h (caso haja fila). Também só pode ser desligada com uma senha que o mesário insere.

Precisão nos resultados

E qual a garantia de que o número que o eleitor digita é o do candidato que a urna computa?

Janino explica que a urna grava os votos de forma aleatória, ou seja, ela embaralha os votos, como num jogo de cartas. Então, a ordem dos votos dados, conforme a fila dos eleitores, não é a mesma que consta nos registros.

Mas, ao fim do dia de votação, cada urna imprime o famoso “boletim de urna”, um resultado parcial da eleição naquele equipamento. Esse boletim é impresso em duas vias. Uma vai para a parede da seção eleitoral e os eleitores podem conferi-la.

A urna também gera um “QR code” que o eleitor pode ler com o celular e assim ficar sabendo, no momento, o resultado da eleição daquele lugar de votação.

A outra via impressa do “boletim de urna” vai para o TSE. Ele não é usado para a apuração.

A contagem dos votos é feita pelos dados gravados na memória das urnas, que seguem para o computador central da Justiça Eleitoral por um canal também criptografado.

O computador do TSE faz, então, um “checklist” dos dados: confere de qual urna e de qual seção o voto veio e afere as chaves de segurança de cada um. Ele decifra a criptografia e conta os votos.

Se algo estranho acontece, como, por exemplo, não haver nenhum registro de abstenção (o que é improvável), ele confere tudo novamente. E depois ainda bate os dados com o boletim de urna impresso. “É criptografia em cima de criptografia”, diz Janino.

As barreiras de segurança

Então o sistema é inviolável? Não. Como qualquer projeto criado pelo homem, a urna e o sistema eleitoral poderiam ser violados, diz Giuseppe Dutra Janino. Mas é muito difícil que isso aconteça. Ele explica por quê:

“Não é impossível. Mas o processo de segurança é tão robusto e tem tantas camadas de proteção que, para fraudar os resultados de uma só urna, o hacker precisaria de um supercomputador e ainda levaria de uma a duas semanas, no mínimo, para conseguir passar pelas 30 barreiras de segurança.”

Caso tente burlar a transferência dos votos das memórias para o TSE, um hacker também levaria mais três ou quatro semanas, segundo Janino, devido à complexidade do processo.

O canal transmite 2 milhões de votos por segundo. Assim, quando o hacker terminasse seu serviço para superar todas as barreiras de segurança, a apuração já estaria concluída há tempos ― nas eleições de 2018, a vitória do presidente Jair Bolsonaro no segundo turno foi confirmada cerca de duas horas depois do fechamento da maior parte das urnas do país, que aconteceu às 17h (no horário de Brasília).

“Por isso, eu diria que é inviável violar o sistema. Além de ser caro demais, porque a pessoa precisaria de um supercomputador, a demora faria o processo todo ser inútil”, diz Janino.

A chegada da biometria

Em 2008, o TSE começou a fazer o cadastramento biométrico dos eleitores. A intenção era atacar a ponta solta do processo: o eleitor.

“Identificamos, por exemplo, um sujeito com 70 documentos de identidade diferentes. Em tese, sem o cadastramento, ele poderia votar 70 vezes seguidas num mesmo dia”, diz Janino.

Em 2020, mais de 110 milhões de eleitores haviam feito o cadastramento. O processo parou por causa da pandemia, e continua suspenso. Por isso, o voto sem o cadastro biométrico será permitido normalmente em 2022. A expectativa é que 100% do eleitorado esteja apto a votar com identificação biométrica até as eleições de 2026.

Fernando Guarnieri afirma que até os políticos mais antigos e tradicionalistas sabem que a urna é segura.

“Afinal, é por isso que muitos mudaram de estratégia [para tentar interferir nas eleições]. Eles passaram para a prática do caixa dois. E quando o financiamento por empresas foi proibido, lançaram mão do aumento do fundo eleitoral, atualmente em R$ 5 bilhões, e de táticas como o espalhamento de notícias falsas”, diz.

A nova cara da urna

As eleições de 2022 também contam com uma novidade em relação ao equipamento para a votação. Mesmo que as urnas pareçam as mesmas dos anos 1990, elas já foram substituídas pelo menos duas vezes.

Isso porque as máquinas têm uma vida útil de dez anos. E, desta vez, as que já completaram uma década serão substituídas por um novo modelo.

Ou seja: pela primeira vez em 25 anos, a cara da urna vai ser um pouco diferente. Uma nova versão mais vertical, parecida com um totem, com o teclado embaixo da tela, vai substituir um quinto de todas as 450 mil urnas usadas pelo país.

A promessa é que ela seja mais fácil de usar, além de ser menor e mais leve, o que facilita o transporte e o armazenamento. A única coisa que permanece igual é a segurança e o barulhinho de confirmação de voto.


Fonte: CNN Brasil

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