A paz tem rosto de mulher

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A paz tem rosto de mulher

Em protestos, na defesa dos filhos, sejam eles soldados ou crianças, mulheres russas travam batalhas diárias que podem mudar os rumos do maior conflito em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial

PORTO VELHO , RO A imagem de uma mulher de 77 anos empunhando cartazes em um protesto contra a guerra entre a Rússia e a Ucrânia demonstrou ao mundo a força e a resistência feminina diante de um conflito que se agrava a cada dia. A ativista Yelena Osipova, sobrevivente do cerco nazista a Leningrado, ação orquestrada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, foi detida pela polícia em São Petersburgo após se manifestar contra os ataques russos ao território ucraniano. Em uma das mãos, sustentadas pelo corpo arqueado, ela pedia a paz. Na outra, a destruição das armas nucleares, para evitar a ameaça de uma terceira Guerra Mundial. O protesto, contudo, foi interrompido por policiais do choque, que levaram a idosa, forçando-a a entrar em um camburão. Ela, por sua vez, não soltou os cartazes.



Em outras imagens, que circulam pelo mundo nas redes sociais, mães de soldados russos capturados por tropas ucranianas choram, desesperadas, ao saber que os filhos haviam sido aprisionados. “Os políticos que fazem essa guerra são homens que não geraram crianças, não as amamentaram nem as viram crescer. Ninguém pergunta a uma mãe se ela concorda que o filho vá para a guerra. Isso é uma tragédia”, afirmou ao R7 Estúdio a russa Elena Constantinovna Gaissionok, professora de artes cênicas e de teatro.

Com a intensificação dos ataques, que começaram na quinta-feira (24), o desabafo de um soldado russo, preso pelo Exército ucraniano, revelou a angústia de quem está no front sem querer lutar. “Viemos para treinar, mas fomos enganados. É por isso que estou aqui”, disse um dos militares. “Depois que fomos enviados para a linha de frente, ficamos desmoralizados. Ninguém queria lutar, mas nos disseram que seríamos inimigos do Estado." Nas gravações, os soldados diziam que não queriam guerra, "queriam ir para casa e ter paz". "Eles nos mandaram para a morte, todo mundo matou todo mundo”, afirmou outro militar.

Diante dos apelos, o Ministério da Defesa ucraniano decidiu libertar os prisioneiros russos na quarta-feira (2), sob a condição de que se encontrem com suas mães. “Não importa em qual parte do mundo, políticos acham que têm o direito de criar uma situação de guerra e que podem resolver o problema com a vida dos outros”, afirma Elena. “Existe essa preocupação entre todas as mães. Onde estão os vídeos de mães que perdem seus filhos na Rússia, nos Estados Unidos e nos outros países? A dor das mulheres nunca aparece nos relatos de guerra”, diz.

Em 13 dias de ataques das tropas russas contra a Ucrânia, ao menos 350 civis ucranianos foram mortos e mais de 700 ficaram feridos. De acordo com o Serviço Especial de Comunicação das Forças Armadas da Ucrânia, cerca de 11 mil soldados russos foram mortos desde o início da guerra. Em meio ao horror das perdas humanas e ao caos instaurado nas cidades atacadas, assembleias de negociação, majoritariamente protagonizadas por homens, não chegam a um acordo pela paz.

“Uma coisa que me impressiona é que em reuniões de governos só vemos homens brancos discutindo, só temos a manutenção da guerra”, afirma Volha Yermalayeva Franco, representante da Embaixada Popular de Belarus no Brasil. “Às mulheres, só resta falar com seus filhos. Mas se o poder estivesse nas mãos delas não haveria guerra”, afirma a ativista, que organizou protestos contra os conflitos em cidades brasileiras. “As mulheres trazem mais paz. Mas isso não deve ser usado para responsabilizá-las, e sim para que sejam mais ouvidas em qualquer instância de poder.”


Às mulheres, só resta falar com seus filhos. Mas se o poder estivesse nas mãos delas não haveria guerra”
Volha Yermalayeva

A socióloga russa Svetlana Ruseishvili, pesquisadora e professora na Universidade Federal de São Carlos, acredita que dar visibilidade às manifestações de mulheres russas, sobretudo mães, é uma forma de diversificar as narrativas que chegam à população para além das versões oficiais propagadas pelos meios de comunicação do Estado. “O apelo das mães tem o potencial de fazer crescer nos militares o sentimento de que eles não são soldados de uma guerra justa”, afirma. Nesse sentido, a socióloga acredita em uma eventual desmobilização do Exército russo. “Eles têm muito medo de represálias, mas não são raros casos de desistência e de automutilação.”

Com a força dos protestos femininos em diversos países entoando gritos pela paz e os apelos das mães de militares, explica a pesquisadora, pode ocorrer uma tomada de consciência sobre a necessidade do fim dos confrontos. “As mães podem ter um papel importante na percepção de que a guerra não faz sentido”, diz Svetlana. “Nenhuma mãe quer ver o filho morrer, é difícil sentir orgulho em ter um filho morto em uma agressão. Pequenas ações, como as promovidas por essas mulheres, podem mudar um pouco o cenário.”

Contudo, ressalta a socióloga, deve-se lembrar que as decisões são tomadas pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, e por um grupo de homens. “Não acredito que ele vá parar a guerra por conta de um grupo de mães, mas esses apelos fazem com que familiares e amigos saibam daquilo que não é mostrado na televisão.”

Se por um lado é necessário ouvir e dar visibilidade às manifestações de mulheres contrárias à guerra em diversos países, por outro a responsabilização pelo fim dos conflitos não deve recair sobre elas. “Os homens têm um grande capital para comandar os exércitos e acabar com o conflito e não estão fazendo isso”, afirma a representante da embaixada de Belarus. “Tudo recai sobre as mulheres, elas acabam ficando responsáveis por isso, sem terem incitado o conflito”, pondera.

O ônus das guerras já impactou mulheres em outros períodos. “Depois da Segunda Guerra Mundial, elas ficaram responsáveis por tudo, e essa cena ainda está muito forte no imaginário soviético”, diz Volha. No contexto pós-guerra, as mulheres que perderam o companheiro nos confrontos eram consideradas as responsáveis por cuidar da família, dos filhos e até dos sogros. “É um peso que não é visto como algo tão glorioso como defender a pátria”, diz. Entretanto, as mulheres que perdiam o companheiro ficavam encarregadas de planejar toda a logística dos familiares para abandonar determinadas regiões. “Elas cuidavam dos sogros com dificuldades de locomoção, sem receber nenhuma glória de libertadoras.”

Jovens mulheres nas ruas contra a guerra

Contrária aos ataques russos na Ucrânia, a psicóloga e professora Alina Ortega, de 32 anos, nasceu e cresceu na capital da Rússia, Moscou, e hoje acompanha do Brasil o avanço das tropas russas por meio de notícias de amigos e familiares que vivem naquele país. “Acredito que teríamos como resolver os problemas de uma forma diplomática”, diz. “A maioria da população não apoia essa guerra, meus amigos estão chocados, com medo, abalados.” A jovem conta que os pais vivem em Moscou e a irmã, que está em São Paulo, ficará mais tempo do que o previsto em território brasileiro.

“A maioria das pessoas não se manifesta por ter medo de ser reprimida. Uma amiga saiu sozinha com um cartaz e a polícia pediu a ela que não ficasse tão visível.” O medo crescente da população se justifica: na sexta-feira (4), foi determinada a proibição do uso do termo “guerra” para se referir aos conflitos. O emprego da palavra passou a ser considerado crime, com punição de até 15 anos de prisão. “As pessoas percebem que o que está acontecendo é uma catástrofe e tentam não pensar sobre isso”, diz Alina. As gerações mais novas, para a psicóloga, são mais conscientes em relação a temas como igualdade, violência e gênero.


“Não são protestos masculinizados”Svetlana Ruseishvili

Quem vai às ruas para se manifestar contra a guerra são, majoritariamente, mulheres jovens e estudantes. “Não são protestos masculinizados”, afirma Svetlana. A socióloga explica que as grandes cidades, como Moscou e São Petersburgo, têm mais acesso às fontes de informação alternativa. “Essa população consegue se informar e se mobilizar melhor”, afirma. “Já nas cidades com menor poder aquisitivo as pessoas têm menos acesso a uma diversidade maior de informações.” Nesses locais [grandes cidades], as mulheres mais jovens são, segundo a pesquisadora, mais politizadas. “Elas não conseguem aceitar valores mais tradicionais, não querem somente se casar ou ser uma extensão do marido. Isso faz com que elas sejam mais ativas na oposição ao governo”, explica.

A divisão do trabalho de acordo com o gênero, explica Svetlana, estrutura a sociedade russa. Segundo ela, as russas são condicionadas a cuidar dos filhos e executar tarefas domésticas. Além disso, há ainda uma forte despolitização entre as russas de outras faixas etárias. “Isso ocorre como uma reação à politização que havia na União Soviética. Muitas lutavam pela educação pública, emancipação sexual. Mas, nos anos 1970, houve uma acomodação, as pessoas começaram a se desmobilizar. Hoje, muitas mulheres com 40 anos ou mais são despolitizadas, mais vulneráveis à propaganda estatal."


Mulheres organizadas além das fronteiras



A repressão na Rússia e em alguns países vizinhos, como Belarus, aumentou consideravelmente nos últimos dias. A representante da embaixada deste país no Brasil afirma que cresce a quantidade de presos políticos. “Muitos deles são mulheres e foram detidos por terem protagonizado protestos”, conta Volha. Segundo ela, ir às ruas em Belarus, país aliado da Rússia, tornou-se algo arriscado. “Muitas mães que não sabem se os filhos com 18 anos serão enviados à guerra estão com medo. Ver um filho enviado para a morte é algo brutal.”

Ela lembra que, há pouco mais de uma semana, algumas mães de militares se mobilizaram pacificamente, sem gritos nem bandeiras empunhadas, e ainda assim foram detidas pela polícia. Volha condena o apoio do presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, a quem se refere como “ditador”, devido, entre outros atos, ao estreitamento de laços com a Rússia. “Tenho parentes e amigas que estão em Belarus que tiveram que fugir para a Ucrânia. Em Belarus, as mulheres têm protestado em todas as cidades.” Entre as amigas que deixou no país, Volha conta que uma delas viu as duas filhas receberem pena de prisão por 15 dias após se manifestarem. Outra, diz ela, lhe confidenciou que teve sorte por ter filhas, e não filhos — assim não teria que vê-los enviados à guerra.

Não são apenas as mães de soldados que têm enfrentado as consequências dos conflitos. Mães de crianças russas que vivem em outros países sofrem os efeitos indiretos do confronto. A Rússia é o quarto país com mais migrantes pelo mundo. São mais de 10 milhões de russos fora do país. “Existem muitas russas na diáspora preocupadas com a desinformação, com filhos sofrendo xenofobia nas escolas”, diz a socióloga. “As mulheres estão começando a se organizar em seus países para que as instituições de ensino conversem com as crianças e evitem a russofobia. A reprodução de comportamentos xenófobos não é solução em nenhum momento.”

O ônus das armas

Enquanto mulheres russas tentam dizer ao mundo — por meio de manifestações com cartazes, bandeiras, gritos, lágrimas no contato com os filhos ou até mesmo por meio do silêncio — que são contrárias à guerra, ucranianas resistem aos ataques e se empenham na luta pela sobrevivência. “Há uma grande diferença em relação às preocupações de russas e ucranianas”, pontua Svetlana. “Na Ucrânia, um país multicultural, as mulheres estão pegando em armas e saindo em defesa de seu país, ameaçado pelo imperialismo russo”, afirma. “Muitas se recusam a deixar o país e vão ajudar os companheiros nos batalhões.”

Além da luta no front de guerra pela sobrevivência, outro papel destinado às ucranianas é o trabalho do cuidado, tradicionalmente atribuído às mulheres. “Elas organizam a saída das cidades com os filhos e se responsabilizam pela logística de pessoas com deficiência e idosos para cruzar as fronteiras em busca dos países europeus na condição de refugiados”, explica a pesquisadora. O contexto de guerra reforça padrões e papéis sociais associados às mulheres, com a função do cuidado.



A permanência do estado de guerra nos países envolvidos representa um retrocesso para a busca pela igualdade de gênero. “Esse atraso vai recair sobre todas. Agora, as mulheres estão buscando, acima de tudo, sobreviver”, pondera Volha. Além de impor às mulheres um maior volume de afazeres domésticos e atividades relacionadas ao cuidados, o confronto impõe consequências econômicas imediatas aos países envolvidos. “Belarus e Rússia sofrem os impactos das sanções aplicadas pelo Ocidente, e o ônus recai sobre as mulheres e sobre os filhos”, afirma a ativista. Após o anúncio das represálias econômicas contra a Rússia, a psicóloga e professora Alina também acredita que a precarização afete mais as mulheres.

“Na Rússia, muitas famílias são separadas, e as mulheres têm de sustentar tudo sozinhas. A economia já acabou, as transações bancárias também pararam, a degradação vai ser natural e tudo está acontecendo muito rápido.” Para os próximos meses, a tendência é que a grande maioria dos setores seja afetada pelas sanções, restando postos de trabalhos cada vez mais precarizados às mulheres.

Além da imposição mais acentuada do trabalho do cuidado, mulheres em situações de conflito sofrem violências físicas e simbólicas diariamente. “Essas são as maiores atrocidades e horrores da guerra”, diz Volha. “A vida da mulher é vista como descartável, por isso sofrem ataques e estupros de forma recorrente.” E não apenas os soldados são os autores das agressões. No sábado (5), o deputado estadual Arthur do Val (Podemos) enviou áudios a integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL) em um grupo privado em que fala que mulheres ucranianas são “fáceis porque são pobres”. As falas machistas e misóginas, alvo de críticas de políticos e personalidades, expõem a violência contra as mulheres em situações de guerra. Nesses contextos, os corpos femininos se transformam em espaços de disputa e alvo de violência física, verbal e simbólica.

“Onde está a história dessas mulheres que pedem a paz e lutam por ela?”
Elena Constantinovna Gaissionok

Publicado na década de 1980, o livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher narra o dia a dia de mulheres que lutaram pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. A obra traz centenas de relatos de ex-combatentes que atuavam como enfermeiras, atiradoras, operadoras de canhões, cozinheiras, telegrafistas, lavadeiras e operadoras de tratores e, por meio de suas ocupações e percepções, constroi a própria narrativa sobre o confronto.

Neste 13º dia de confrontos, mulheres russas e ucranianas enfrentam novas batalhas invisibilizadas. “Onde está a história dessas mulheres que pedem e lutam pela paz?”, cobra Elena, que assiste amigos e amigas se curvarem ao medo dos conflitos e da decisões tomadas por homens.




Fonte: R7

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