'Quero que outros não passem pelo que passei', diz brasileira que integra o governo Biden

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'Quero que outros não passem pelo que passei', diz brasileira que integra o governo Biden


Natalicia Tracy busca integrar agências federais dos EUA para combater exploração de trabalhadores

PORTO VELHO, RO - Há cinco meses, o governo Biden nomeou uma brasileira para uma função importante: ajudar com que trabalhadores, especialmente imigrantes, escapem de armadilhas, como ficarem presos em jornadas extenuantes e mal-pagas por não saberem como pedir ajuda.

Natalícia Tracy, 50, é conselheira sênior para a Agência de Saúde e Segurança Ocupacional (Osha, na sigla em inglês) do Departamento do Trabalho (equivalente a ministério). No cargo, ela tem buscado unir esforços entre os vários setores do governo americano para aumentar a fiscalização sobre exploração laboral.

"Por exemplo: o USDA (Departamento de Agricultura) vai investigar a qualidade de um alimento. Mas eles chegam ao local de produção e tem um monte de gente trabalhando em condições precárias. Eles podem avisar a Osha, para que a gente investigue", explicou ela, em entrevista à Folha.

Natalicia Tracy, ex-empregada doméstica que se tornou conselheira do Departamento do Trabalho no governo Biden - Brazilian Times

Há também parcerias com as autoridades de imigração, como criar protocolos mais precisos sobre como lidar com situações ligadas à exploração. Ela aponta que cerca de 40% dos casos envolvendo tráfico de pessoas para os EUA ainda têm relação com trabalho.


Outra de suas missões é criar meios de estimular as pessoas que estejam sendo exploradas a fazerem denúncias.

"Muitos trabalhadores, principalmente sem documentos [de imigração], têm grande receio de buscar informações e contar o que está acontecendo com eles. O acesso à língua é uma barreira. E mesmo quem tem acesso à comunidade muitas vezes tem medo de falar. Você não sabe em quem confiar. Muitas vezes a pessoa sabe que o que está vivendo não é certo, mas não entende a gravidade da situação. Então parte do meu trabalho é expandir as redes de informação", disse.


"Estamos criando novas iniciativas para que os trabalhadores saibam que o Departamento do Trabalho está aqui para apoiá-los, independentemente do status migratório. Não nos interessa de onde veio, como veio, quanto tempo estão aqui. Todos têm o mesmo direito", diz.

"Se a lei começar a excluir pessoas, ela não funciona, né? Estamos trabalhando para deixar claro que todo trabalhador tem valor. A gente humanizar todos os trabalhadores é o primeiro passo para criar uma sociedade justa", defende.

Natalícia viveu por si mesma várias das dificuldades que busca combater. Ela veio para os EUA em 1989, aos 19 anos, trabalhar como babá e empregada de uma família brasileira em Boston. Acabou sendo submetida a longas jornadas, com salário muito baixo e restrições para usar o telefone e se comunicar com o mundo lá fora.

"De acordo com as leis trabalhistas dos Estados Unidos, eu estava num trabalho considerado escravo", afirmou ela em 2016 à BBC News Brasil. Ela dormia numa varanda fechada, onde o chão era de cimento. Muitas vezes não sobrava comida após cozinhar para os patrões.

"Eu tive um começo muito difícil aqui. Não só pelo processo de adaptação, mas pelas condições de trabalho que me foram oferecidas. Quando nós já passamos por uma situação, a gente sabe o que é. Muito da minha energia para trabalhar e ajudar outras pessoas vem disso: não desejo para ninguém nada das coisas que eu tive que superar", comenta.

A família que a contratou acabou voltando ao Brasil, mas ela ficou nos EUA, onde se casou com um americano e decidiu estudar. Terminou o ensino médio e em seguida criou uma robusta carreira acadêmica. Em 2016, obteve doutorado em sociologia pela Boston University, com uma tese sobre as relações entre raça, imigração e trabalho.

Como professora da Universidade de Massachussets em Boston, deu aulas sobre temas como trabalho e globalização e o tráfico de pessoas. Fez estudos em parceria com outras universidades, como Harvard, e escreveu várias publicações sobre a área.

Ao mesmo tempo em que estudava, Natalícia foi se firmando como uma liderança por direitos trabalhistas em Boston, que concentra uma grande quantidade de brasileiros, parte deles sem documentos. Teve cargos como diretora-executiva do Centro do Trabalhador Brasileiro e ajudou a fundar a Coalizão pelos Trabalhadores Domésticos de Massachussets.

Em 2014, ela ajudou a articular a aprovação de uma lei estadual para ampliar os direitos aos trabalhadores domésticos, como a exigência de que tenham contratos por escrito e dias de descanso, mesmo que sejam pessoas sem documentos. Sua atuação também contribuiu para aprovação de novas leis trabalhistas no estado de Connnecticut.

Com este trabalho, acabou se aproximando da política. Ela chegou a se reunir com o então presidente Barack Obama e a senadora democrata Elizabeth Warren, ambos democratas.

Ela avalia que o convite da Casa Branca para o cargo atual veio na hora certa. "Esta posição me dá a oportunidade de amplificar as vozes de pessoas como eu. No Departamento, tem ‘eu’ de pessoas como ‘eu’. Sinto uma responsabilidade enorme, por poder fazer coisas de alcance nacional, mas também acho importante que as pessoas me vejam neste cargo, porque isso mostra que por mais que você tenha dificuldade, não é impossível avançar".

Natalícia costuma vir ao Brasil ao menos uma vez por ano, visitar sua mãe, com quem fala com muito carinho. "Meu pai faleceu há cinco anos, e minha mãe, para mim, é uma fonte de energia e inspiração. Todas as coisas que eu superei foram por causa da fundação, dos valores, das palavras, que ela me deu", comenta.

Morando em Washington em dois meses, ela conta que precisou se afastar da vida universitária por enquanto, mas faz planos de seguir pesquisando as relações entre política e trabalho. "Quem sabe mais para a frente, gerenciando meu tempo melhor, posso tentar dar aulas em alguma universidade daqui?"


Folha de São Paulo

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